ARTIGO PUBLICADO POR SOLICITAÇÃO DA REDE BRASILEIRA DE TEATRO DE RUA - RBTR
I. TENTANDO UMA INTRODUÇÃO, por Alexandre Mate[1]
Em uma de suas sempre significativas reflexões, o pensador francês Michel de Certeau afirma que passado-presente-futuro combinam-se para ressignificar as vivências cotidianas do espaço, na “arte” do caminhar. Nessa medida, a memória como algo que se produz permanentemente refere-se, sobretudo, às vivencias dos sujeitos com a espacialidade. Se –ao se lembrar de algo apresentado em um espaço – o exercício de memória (exercício mnemônico) subtrai muito da paisagem social e de tantos de seus complicadores, passado algum tempo depois do evento, é preciso um grande esforço no sentido de tentar trazer à consciência a troca de experiência simbólica, proposta pelo espetáculo na rua.
Na retomada que vou tentar desenvolver agora, muitas das impressões que percebi no público – no período compreendido pela 14ª edição do Encontro Nacional de Teatro de Rua de Angra dos Reis, em que ocorreu o evento – é possível que se percam agora. Desse modo, se se lembra da obra, lembra-se dela subsumida do social. Nas práticas cotidianas, e talvez o mesmo pudesse ser dito em relação ao produzido pela memória há uma articulação, em um processo de vivência espacial, fragmentos, resíduos, ruídos e fantasmas que se incorporam nessa vivência produtora de sentido.
Entretanto, exatamente pela viver pressupor uma dialética permanente entre o que se ganha, ao se perder e vice-versa, vou tentar apresentar algumas das apreensões como participante crítico no evento acima citado. Vale destacar que não apresentei minhas apreensões antes por conta de excessos de trabalhos e de compromissos. Ter estado na bela Angra dos Reis foi um triplo privilégio, primeiro pela querida dupla formada por Licko e Jussara, a quem, e de público, agradeço o convite e a confiança; segundo pela oportunidade de assistir e trocar tantas impressões e apreensões durante o período de duração do evento e também pela acolhida, na bela – do ponto de vista humano e do natural – Angra dos Reis.
Em sua 14ª edição, o Encontro Nacional de Teatro de Rua, acontecido entre 07 e 10 de maio de 2009, em Angra dos Reis, será revisitado – e agora, cidade de São Paulo, três de junho do mesmo ano – com o objetivo de trazer alguns fragmentos de belos espetáculos que por lá se apresentaram.
Primeiro mérito precisa ser tributado à comissão de seleção, que soube criar uma programação representativa de diferentes experiências que podem ser levadas para a rua, objetivando principalmente a concepção e repertório, tanto dos fazedores de arte como aos apreciadores do teatro. Um painel diverso enriquece e amplia a potência de quem passa pelas ruas e, num momento de ruptura de sua cotidianidade dela espera algo significativo.
Apesar de Jussara Trindade, gentilmente, ter enviado todas as fichas dos participantes, algumas chegaram sem qualquer informação (parece que o arquivo veio “corrompido”), motivo pelo qual evito citar nomes de pessoas. Outra coisa, como já faz algum tempo em que o evento foi apresentado, é possível, mesmo fazendo algumas anotações, que me confunda em uma ou outra coisa. Desse modo, peço desculpas, caso tenha cometido algum impropério, tenha misturado impressões, tenha, enfim, trocado bolas...
Por último, não pude assistir a todos os espetáculos do evento. Desse modo, não vou, infelizmente (nesse momento, mas atento a outras oportunidades que apareçam), comentar todos os espetáculos. Positivíssimo, e facilitador, e pioneiro, e alentador foi a constituição de Núcleo Nacional de Pesquisadores de Teatro de Rua. Assim, trocas e encontros apresentam-se como vislumbres para um processo de trocas, permanentes, espero e vou batalhar.
Quis escrever esse texto (mesmo correndo “certo perigo”), para apresentar algumas impressões críticas, tanto por haver me comprometido com essa tarefa como porque acredito ser fundamental realizar todos os esforços no sentido de documentar as experiências e espetáculos que são levados às ruas, parafraseando Gonzaguinha: “Dessa imensa avenida chamada Brasil.”asiado todas as fichas, algumasa em deslocamento.onagem e atriz enfrentam a ficç
II. APONTAMENTOS DO ASSISTIDO
Cia. Carroça de Mamulengos
Oficialmente, o evento inicia-se muito bem com o digníssimo grupo cearense, de Juazeiro do Norte, Cia. Carroça de Mamulengos apresentando Histórias de teatro e circo. Sob uma lona, por conta de durante boa parte da madrugada ter chovido, o espetáculo atrasa sua apresentação. Foi preciso transportar o equipamento de um lugar para outro.
Então, já no espaço de apresentação, há tempo para acompanhar a “passagem de som”. Com o violão dando completude ao corpo, a maestrina Maria Gomide – filha mais velha (?) da surpreendente mãe Schirley França: que tão belos seres colocou no mundo e em cena – coordenou trabalho de técnicos, no sentido de o som estar perfeito. No palco, acompanhando as evoluções de Maria, Beto Lemos e sempre com um sorriso rasgado, participava da festa também. Prova técnica, mas com os verdes olhos de Maria pousados na criançada, que lota a platéia, a todo o momento.
No espaço de representação, um palco formado por tábuas perpendiculares à platéia, limitado por tapadeira-empanado de chitão, prefigura uma teia de aranha. O atraso para dar início ao espetáculo foi grande, mas o prazer de assistir àquela passagem de som fez com que não se percebesse tanto o tempo correndo.
O espetáculo, com direção, criação e concepção de Carlos Gomide, inicia-se com um galo cenográfico e manipulado, que desfila sobre o empanado. O galo anuncia o início do espetáculo e o despertamento de vários bichos, que serão vestidos e mimados pelos atores da família...
Na platéia a criançada vibra entusiasmada pelo desfilar de diversos bichos, e fica enlouquecida quando um deles, o dragão Xodó, solta fogo pela boca. Pirotecnia do bicho e da platéia. Emociona ver a emoção infantil, partilhada, contaminando alguns duros corações.
Bastante emocionado por ver uma família tão linda, junta, apresentando-se, de modo tão harmonioso, penso porque gosto cada vez menos de espetáculos apresentados no palco... Nesse momento de devaneio reflexivo, uma criança desprende-se da mãe e vai até um “carneirinho” em cena para acariciá-lo... Ela o acaricia e conversa com ele: o que ela diz, claro, é um segredo!!! É isso, no devaneio, a resposta. No espetáculo de rua, que vislumbra a troca de relação e de experiência, como afirma a atriz Selma Pavanelli – do grupo paulistano Buraco d’Oráculo –, não se pratica o chamado “autismo estético”: atores e público se percebem e ressignificam, em igualdade, um momento vivido. Nenhuma parede ou muro existe para segregar, separar: os dois conjuntos se veem, ouvem o que um diz ao outro e preenchem uma relação presencial, repleta de tantas lacunas.
Isso me remete à realidade social de que faço parte, e ainda em estado de devaneio – mas sem perder dos olhos e do sentimento que corre o espetáculo –, indago-me acerca dos legisladores. Esses seres já foram crianças, têm filhos, netos, sobrinhos... veem as crianças e parecem esquecer de como são simples a totalidade de suas necessidades. Ao esquecer isso, esquecem tantas promessas feitas e que, por meio de votos, foram eleitos, sobretudo por tantos pais e mães, cujos filhos crescem, mas sem que cresçam as oportunidades que se lhes deve.
Apontando a importância da arte no processo de formação da criança, o importantíssimo crítico de artes plásticas, Mário Pedrosa, no texto Frade cético, crianças geniais, afirma:
A mais autêntica finalidade desse aprendizado [educação pela arte] é mesmo a de preparar a meninada para pensar certo, agir com justeza, manipular as coisas judiciosamente, julgar pelo todo e não parcialmente, apreciar com proporção e confiança, gesticular com propriedade, utilizar-se das mãos com precisão, tirar alegria não só das grandes coisas e acontecimentos da vida, como, também, dos insignificantes e pequeninos. Ah! Esses que assim se conduzirem quando adultos serão artistas, mesmo que nunca mais peguem num lápis ou num pincel. Verão a vida como uma sadia e bela obra de arte a preservar... e apreciarão, acima de tudo, o trabalho bem realizado, pois neste sentirão a participação carinhosa do homem, penhor do racional, a emprestar-lhe um valor estético que transcende até ao ético.[2]
Por intermédio de uma dramaturgia em forma de painel, e penso que aí reside o maior problema do belo espetáculo, as cenas – costuradas principalmente pelas músicas que apresentam uma narrativa épica – estruturam-se a partir de diferentes tipos de manipulação e expedientes característicos do espetáculo misto de rua. Os atores têm domínio do que fazem: tem pleno domínio da cena e da relação com a platéia; o figurino é clássico, bem talhado e colorido; as músicas são bem tocadas e cantadas...
Em francês, fada escreve-se fée; dessa palavra surgiu um tipo de espetáculo cujo propósito é fazer aquilo que toda fada deve proporcionar: encantamento. Então, surge a féerie. Aclimatada ao português, a palavra, referindo-se a encantamento, foi grafada como feérico... Pensem como são feéricos os espetáculos das escolas de samba no Brasil, as festas do boi etc. Em teatro, são chamados de espetáculos feéricos, sobretudo, aqueles mistos, que misturam dança, canto, cenas dialogadas curtas... conhecidos como teatro de revista.
O circo é feérico... Muitos espetáculos de rua também. Histórias de teatro e circo é feérico e encanta. Parabéns à ilustre família de artistas abrigadas pela Carroça de Mamulengos.
Cia. Chegança
No primeiro dia de evento, o segundo grupo a apresentar-se, vindo de São Luís do Maranhão, foi a Cia. Chegança, dirigida por Michelle Cabral. Adotando proposição de processionalidade, os atores conclamam o público para segui-los saindo da Praça do Porto até a Praça Codrato Vilhena.
Referindo ao ocorrido comigo, sem generalizar, evidentemente, o primeiro problema enfrentado pela Cia. Chegança diz respeito ao fato de “certa contaminação emocional” proporcionada pelo espetáculo anterior. Tomando Kant, estremeci de prazer diante da beleza proporcionada pelo espetáculo da Carroça de Mamulengos. Os integrantes do grupo do Maranhão, e isso era visível, davam o seu melhor, mas, ao nos conduzir de um ponto a outro, o cantar de seus integrantes apresentava-se sem potência, sem brilho, sem jocosidade. Nenhuma vez, os atores tentaram instigar o público a cantar junto, ainda que fosse um verso, um refrão... Seguíamos os atores, mas apartados do espetáculo. O canto de entrada, que na tradição popular, precisa ser forte e conclamante, anunciante da companhia que chega não cumpriu sua predestinação.
O título da obra, bastante sugestivo: A mulher que vendeu o marido por R$ 1,99, do mesmo modo como a chegança, não buscou o público, não se relacionou – solicitando cumplicidade, sugestões, ajuda – com a platéia: permaneceu enterrado em si mesmo. Insisto que os atores, debaixo de um sol intenso e forte, davam o seu máximo, mas o espetáculo não conseguia manifestações de cumplicidade. Usando uma metáfora, sobrou alguma coisa de alvenaria imaginária (alusão à quarta parede) impedindo uma relação e troca de experiência com a platéia.
Era claro haver uma concepção de espetáculo, banhada por um conjunto de tradições populares, do cordel a alguns passos de dança – que Mario de Andrade nomeou dança dramática... –, passando pelo ritmo musical, mas, e infelizmente, em Angra dos Reis, o espetáculo não cumpriu sua destinação intrínseca enquanto espetáculo popular de rua. Talvez os atores precisassem, naquele momento, de mais um período de treinamento e de conhecimento do requerido para as manifestações de rua.
Como observação final, à saída do espetáculo, e um pouco mais distante, não deixa de ser digno de nota, o fato de o Sr. vice-prefeito, segundo me informaram, em nome da gestão Tuca Jordão, distribuir rosas às mulheres passantes por conta de, no dia seguinte comemorar-se, oficialmente, o chamado “dia das mães”. Desse modo, por justa razão, depois de a mulher da peça vender seu “folgado marido” por R$ 1,99, todas as outras, alegorizadas ou não nela, eram premiadas com uma flor.
Irmãos Brothers
À noite, ainda no primeiro dia de evento do Festival, na Praça da Matriz, foi a vez do grupo, sediado no Rio de Janeiro, Irmãos Brothers mostrar o seu a que viemos, “mostrar o seu valor”. Nessa primeira noite, já era possível perceber o sucesso do evento: a praça estava absolutamente lotada, “gente saindo pelo ladrão”. Com direção de Jorge Fernando e batizado 15 anos dos Irmãos Brothers, o espetáculo oferece ao público uma espécie de “melhores momentos de seu repertório”, inserindo-se na proposição de espetáculo de variedades, decorrente do significativo período de existência do grupo.
Cumprindo rigorosamente aquilo com o que se compromete e apresenta em suas peças gráficas, os “manos em duplicidade” conseguem embalar e envolver a platéia durante todo o curto tempo, que demora o espetáculo. Os integrantes do grupo apresentam vários números juntos, e cada integrante tem seu momento solo, relacionando-se, muitíssimo bem, com a platéia. Nesse particular, e vale cumprimentar o formato sugerido pelos coordenadores do Festival e pela Cultuar – Fundação de Cultura de Angra dos Reis, os integrantes dos grupos acompanham todo o festival. Desse modo, imagino que os atores da Cia. Chegança devam ter se divertido bastante e apreendido inúmeras probabilidades de relação com a platéia.
O espetáculo foi uma verdadeira festa e deliciosamente divertido. Entretanto, e por já conhecer o trabalho do grupo, prefiro os Irmãos Brothers apresentando espetáculos a partir de uma dramaturgia com personagens, narrativa, transformação de objetos...
Insisto em que a explicitação de meu próprio gosto pessoal não tira o mérito do grupo e do trabalho!
Cia. Mamulengo da Folia
O segundo dia da 14ª edição do Festival Nacional de Teatro de Rua de Angra dos Reis começa muito bem. Na Praça do Porto, Danilo Cavalcanti, um atual paulistano, que já chamei de “mezzo nordestino e meio italiano”, traz a eloqüência popular nordestina e promove sua explosão, por meio de bonecos, prosódia, música e mentalidade pernambucanas.
Para fazer o reconhecimento do público, Danilo Cavalcanti, na condição de boneco-bicicleteiro passeia pelo espaço em que o espetáculo irá ser apresentado.
Difícil permanecer alheio, triste, “angelical”, inocente às personagens da tradição popular nordestinas. É certo que a narrativa é contada tomando a tradição da literatura de cordel, mas Danilo Cavalcanti consegue mimar a todas elas carregando em si uma longa e significativa tradição popular. Escondido atrás do empanado, mas de olhos firmes na platéia, Mestre Danilo Cavalcanti envolve, emociona, encanta pelo caráter popular da malandragem nordestino-brasileira. Nesse sentido a narrativa aparece repleta de expressões e alusões grotescas (que podem ser chamadas também de escatológicas), por exemplo, há uma personagem chamada Cabo Setenta (que existe também na obra Torturas de um coração de Ariano Suassuna). Ocorre que, de acordo com prosódia nordestina, as sílabas são faladas de modo intenso, à exceção da “ten”, a personagem é apresentada como “cabusetenta”... é clara a alusão ao órgão sexual feminino.
O espetáculo ganha um tom mais característico e transporta para qualquer uma e todas as praças nordestinas (localizadas em qualquer Estado nordestino ou paulista ou carioca ou brasileiro) pelo trio de músicos: sanfona, zabumba e triângulo embalam as personagens e a narrativa apresentada por Danilo Cavalcanti.
O espetáculo A folia no Terreiro de Seu Mané Pacaru imprimi a nós todos, brancos ou negros, nascido em qualquer região do País de que temos uma raiz próxima, algo imaterial a zelar, a preservar e com o qual nos embalar... parafraseando Noel Rosa, a partir de uma língua que já passou de português.
Grande Cia. Brasileira de Mystérios e Novidades
Caminhando em direção em que o próximo espetáculo seria apresentado, entrei para conhecer a Igreja de Santa Luzia. Linda construção inaugurada em 13 de dezembro de 1632. A data em princípio, o 13 de dezembro me terrificou, afinal, muitos séculos depois, nesse mesmo dia, em 1968, o País foi mergulhado em uma de suas piores ditaduras... Depois desse choque momentâneo, a monumentalidade e, sem qualquer paradoxo, a simplicitude da igreja encantam. Fiquei imaginando ao olhar tantos detalhes, os primeiros trabalhadores que ergueram aquela construção, tantos outros em várias reformas de que devem ter acontecido. Quantos fiéis ajoelharam-se naquele chão, quanta fé e esperança depositadas nos santos de lá. No breve momento em que lá estive, algumas pessoas rezavam fervorosamente...
Saio da bela Igreja reprovando apenas a placa que solicita aos fiéis qualquer ajuda econômica para a salvação de suas almas... Nesse dia 08 de maio, às 16h, constava da programação do Festival o espetáculo Ciclope, fundamentado no mito grego homônimo, apresentado pela Grande Cia. Brasileira de Mystérios e Novidades do Rio de Janeiro, mas fundada em São Paulo, em 1990, e dirigida pela instigante e sempre criativa Lígia Veiga. A nova e bela Praça Zumbi dos Palmares (Largo do Mercado Municipal) preencheu-se do mais entusiasmado espetáculo ritual. A apresentação inicia-se com deidades gregas, ou não seriam ajoiés/ekédis da tradição do candomblé? O fato é que as sincréticas personagens montam no espaço-terreiro-templo um monumento: uma cabana.
Várias hipóteses podem ser formuladas acerca da cabana, mas, para lembrar o empenho e a pesquisa de Lígia Veiga, é bom lembrar que a palavra grega skéne, cujo significado é cena, tem como raiz sk, que indica palavras que selecionam, abrigam o conceito de fazer sombra. Desse modo, sk caracteriza-se na raiz do verbo skenéo que significa construir tenda. Esse parêntese é aqui apresentado para demonstrar que a encenadora do espetáculo transita esteticamente com significativo processo de pesquisa.
Tão logo a tenda mítico-cosmogônica é montada, aparece uma sugestiva carroça e nela o espaço que será consagrado às musicistas. Trata-se, sem dúvida, se se puder falar desse modo, do ponto alto do espetáculo. A sonoridade criada pelas mulheres é deslumbrante: são musas-musicistas surpreendentes. A pesquisa sonora com instrumentos inusitados é arrebatador.
Ciclope entra, e em disputa pelo poder, acaba arrebanhando sátiros, cuja coriféia é uma negra atriz linda Mafalda Pequenino (e peço desculpas por não apresentar outros nomes a ficha técnica do espetáculo chegou-me corrompida), que singra o espaço, em puro ato de enfrentamento: personagem e atriz enfrentam tanto a ficção da obra como a realidade das ruas!
O espetáculo é grandiloqüente, ousado e tem estofo de quem sabe o porquê vai para a rua e a quem o espetáculo deve atingir. Apesar da grandiosidade da obra, há, ainda (não sei se premeditado ou não), certa limpeza a ser promovida. Dentre elas, destacaria muitas das falas coletivas do coro. Certa histeria corporal da personagem coletiva tem um caráter excessivo (atores parecem esquecer que o espetáculo é feito para um público) e não se consegue ouvir o que fala a personagens, sobretudo quando se encontra em deslocamento.
De qualquer forma, penso, pode ficar contente esse conjunto de criadores pela obra construída. Lígia Veiga é uma grande “maestrina da cena” e organizou um grande momento de criação coletivo.
Que o espetáculo tenha uma grande vida e que consiga ser apresentado muitas vezes!
Cia. Gente de Teatro
A gente morena, chegando da Bahia – terra de Assis Valente e de tantos outros artistas – veio para mostrar o seu valor. Como não são bobos, eles chegam em coro e vêm supercoloridos, usando, como intróito de chegança, o Abre alas da grande compositora Chiquinha Gonzaga. Na chegança, e à semelhança do adotado como prólogo na forma da revista teatral e certas manifestações de rua, o elenco apresenta-se, e, também, ao diretor do espetáculo, Luis Bandeira.
Nesse segundo dia de evento, e com tantos espetáculos já assistidos, não deixa de ser louvável tratar-se do primeiro grupo a apresentar-se sem microfone. Não vou tratar dessa questão, mas quero lembrar que são muitos e polêmicos os pontos de vista, de puristas e tradicionalistas: premidos ou não por ortodoxias, que se posicionam de modos opostos acerca do uso do microfone em espetáculos de rua. Ainda com relação a espetáculo de rua e na rua também há pontos de vistas diferenciados, mas não cabe, nesse momento, tal discussão. Cabe, sim, o registro de que a totalidade dos integrantes do grupo conseguiu ser ouvido, durante a lotadíssima apresentação do espetáculo, na Praça da Matriz.
Apresentado o coro, os pregoeiros apresentam-se individualmente, cada um vendendo seus produtos. Nessa venda, sobretudo pelo vendedor de bananas e depois pelo vendedor de rolinhas, há muita ambigüidade e deliciosa alusão sexual. Nesse momento, o público já é capturado pelos atores e pelo espetáculo. Por meio dessa percepção, e conscientes de que já houve uma conquista da platéia, a maioria dos atores, joga e muito bem, trocando experiência. Se na noite anterior, naquele mesmo espaço, os Irmãos Brothers haviam brincado com a platéia, com os atores da Cia. Gente de Teatro, mesmo sem ir ao centro da cena, a verve de alguns atores, fez com que a platéia fosse a oitava personagem.
Os atores transitam com a tradição das narrativas populares e mesclam no espetáculo a criação de personagens com a inserção épico-narrativa. Duas das atrizes, a dona da barraca e a vendedora de ervas, irreconhecível, sem maquiagem são excelentes. Uma das atrizes, a mais alta, destoa do conjunto, inclusive na maquiagem... Todas as mulheres carregam nas tintas e no colorido da maquiagem, mas esta última usa uma maquiagem clássica.
De qualquer forma, mesmo havendo alguma dissonância, o conjunto e afinado e afiado, e, pode-se dizer, herdeiro de uma certa tradição da comédia popular, maravilhosamente bem aclimatada ao nordeste brasileiro. Bahia veio muito bem representada com o seu Cordel do pega pra capá..
Cia. da Lua
Primeiro grupo da cidade a apresentar-se no evento. Infelizmente, o local escolhido – a Bica da Carioca, local erigido em 1842 – pelo fato de ser um grupo local e ter levado um número grande de espectadores, fez com que aqueles que chegaram ao espetáculo, mesmo na hora marcada, não conseguissem ver o espetáculo. O local escolhido prejudicou sobremodo a apreensão ao trabalho.
Do que deu para perceber, podem ser destacados alguns problemas. Além de o local escolhido ter sido equivocado, trata-se de uma obra concebida para palco e não para rua. Desenhos de cena, texto (extremamente retórico e ligado ao que se chama de teatro de conversação), entradas e saídas amparadas no conceito de coxias, altura da voz, a iluminação... Tudo característico de teatro de caixa. Nenhum problema há em que um espetáculo de caixa vá para a rua, entretanto, esse deslocamento pede mudança dos expedientes cênicos.
Do ponto de vista temático, e a obra, segundo consta, desenvolve-se na década de quarenta do século XIX, o ponto de vista é da classe dominante. O ator que faz o escravo aparece (e isso é questão de concepção de quem dirige) de modo arquejado e meio néscio. Como todas as outras personagens são desenhadas de “modo ereto”, a comparação é inevitável... Trata-se de uma personagem próxima ao estereótipo, o que é uma pena. O olhar a partir do qual a personagem é vista e concebida, sem dúvida, corresponde a como certa classe dominante escravagista concebia o negro.
Apesar de esforço do conjunto, no sentido, por exemplo, de certa reconstituição do figurino, um dos atores – e não acreditei nisso quando vi, e depois alguém também chamou a atenção para isso – usava um brinco em uma das orelhas... Como havia a intenção de recuperação de certa visualidade na reconstituição da obra, esse deslize foi muito mal. O diretor precisa olhar esses detalhes.
Penso que os integrantes da Cia. da Lua – e lembro da atriz que fez a mãe no espetáculo ter participado do processo interventivo desenvolvido pelo mago de todas as praças, Amir Haddad – devem ter aproveitado o evento como um todo. Penso que se houve troca e interlocução, mais pessoas devem ter apresentado ao conjunto que apresentou A lenda da Bica da Carioca, alguns dos pressupostos de quem se apresenta nas ruas.
Assim, que eu possa ver esse mesmo conjunto, em outro ou no mesmo espetáculo, promovendo, por meio da escuta e dos procedimentos característicos de quem escolhe a rua, trocas com a platéia.
Cia. de Teatro Nu Escuro
Diretamente do Estado de Goiás, e passando por outros encontros e festivais, a Cia. de Teatro Nu Escuro escolheu, como texto a conferir um ponto de partida ao espetáculo, o “clássico” A farsa do Mestre Pierre Pathelin, de autor anônimo francês do século XIV/XV.
Decorrente do espetáculo anterior, apresentado relativamente perto da Praça da Matriz, novamente lotada, o espetáculo teve de sofrer um atraso para que o público que assistiu ao espetáculo da Cia. da Lua tivesse tempo de chegar ao espaço em que seria apresentado O Cabra que matou as cabras. Assim, mas não pelo atraso ocorrido para iniciar a apresentação do espetáculo, tendo em vista tratar-se de uma proposta da direção, os atores-personagens passeiam por entre o público. Um desses atores, o tal Cabra, passa com uma garrafa de – imagino – aguardente, talvez para deixar o “miolo mais mole” da platéia. Afinal, ele será julgado, logo mais, em uma cena de julgamento.
Opção do jovem diretor – Hélio Fróes, e o afinadíssimo grupo demonstra domínio da cena, das relações de troca com a plateia –, os atores não usam microfone, e são absolutamente ouvidos pela grande platéia presente ao espetáculo. Trata-se do espetáculo mais escatológico de todos a se apresentar na 14ª edição do Encontro Nacional de Teatro de Teatro de Rua. Desse modo, como já havia mencionado antes o conceito, talvez agora, e brevemente, fosse importante apresentar alguns indicadores conceituais do termo.
Parte significativa dos termos e conceitos utilizados em teatro foi cunhada pelos gregos da Antiguidade clássica e transposta aos que vieram... Hoje, o conceito de escatologia refere-se, sobretudo, a comportamento mal educado, deselegante, não civilizado, decorrente de skatoslogos: referindo-se a doutrina que disserta sobre as fezes. Tendo uma pequena variação gráfica eskhatoslogos, o conceito refere-se a doutrina final do tempo.
O conceito aqui utilizado refere-se, portanto, à primeira conotação. As personagens da montagem do grupo de Goiânia são personagens, fazendo uma alusão ao filme de Ettore Scola, além de sexualizadas: feias, sujas e malvadas.
Diferentemente de A lenda da Bica da Carioca, neste espetáculo, e não apenas pelo texto original, o ponto de vista da encenação corresponde, como se espera de um espetáculo popular, não é o do comerciante ou do advogado, mas ao do empregado. O ator que apresenta esta personagem (o Cabra) é excelente. Tem domínio de seu fazer e do modo como lida com a platéia. De modo semelhante, precisam, também, ser destacadas as atrizes que fazem o advogado e sua mulher.
Parabéns a todo o grupo e ao seu belo trabalho. Foi uma excelente finalização de segundo dia de jornada.
Grupo Pombas Urbanas
O queridíssimo Lino Rojas, que tanta falta faz a tantos de nós, muito deixou. Pelo exemplo comportamental e de militância, pelos trabalhos apresentados, pela crença e tenacidade com a qual sempre abraçou o trabalho comunitário. Trata-se de um artista digno, avesso às badalações, e que escolheu um bairro muito distante da zona leste da cidade de São Paulo para disseminar e trocar seus tantos saberes. O Pombas Urbanas, em seus tantos tentáculos, tanto sociais como estéticos, representa uma continuidade do trabalho de Lino Rojas. Assim, pelo menos para mim, vê-los em cena significa, de modo algum aprisioná-los ao mestre, mas, o que me deixa muito feliz, constatar – a partir da mudança dos tempos – uma sequência àquele trabalho.
Apresentado o argumento inicial, penso poder, e como o fiz pessoalmente ao Adriano Mauriz, discorrer acerca de alguns problemas acerca do espetáculo. Adotando algumas determinações do teatro épico, os seis atores do espetáculo dividem-se, todo o tempo em representar e contar as duas histórias que compõem o espetáculo. O primeiro problema, e também de acordo com tantos colegas com os quais tive a oportunidade de conversar, decorre dos textos escolhidos. A primeira delas, decorrente de uma dor de dentes, tem uma cotidianidade absolutamente comum, mas sem qualquer atrativo alegórico mais interessante. A segunda, totalmente alegórica, ao contrário da primeira, é excessivamente alegórica. Desse modo, do ponto de vista temático, entre uma e outra história, os extremos parecem não se encontram na obra. Desse modo se a segunda história alegoriza a vida cachorra, por que pintar o ator como se fora cachorro? Não se trata de uma alegoria?
Os atores têm senso e domínio absoluto do espaço de representação e do pressuposto pelo teatro de rua, tentam processos de troca, mas tanto as discussões propostas pelos textos como as proposta de encenação parecem não ajudar. De todos os espetáculos assistidos até então, na Praça da Matriz, cujo público foi aumentando dia a dia, Histórias para serem contadas foi aquele em que houve um abandono maior durante o espetáculo, terminando, também, com um menor número de pessoas na praça.
Afirmaram alguns parceiros de São Paulo que, originalmente, o espetáculo compreendia três histórias, e que, por problemas de entendimento, a terceira foi suprimida. Então, o tão grande esforço feito (e é muito perceptível isso) pelos atores decorre da ausência da terceira ou pelo problema, mesmo, com o próprio espetáculo.
Espero, e a visita já está marcada, assistir a muitos espetáculos do grupo. Por enquanto, ficou a potência do grupo, mas não um resultado significativo.
Grupo Arte da Comédia
Sob o curioso título de Aconteceu no Brasil, enquanto o ônibus não vem, o grupo curitibano, dirigido pelo italiano Roberto Innocente. Assim, por tratar-se de um mestre, o diretor, que assina também o canovaccio, o espetáculo acontece maravilhosamente. Comunica-se com o público, consegue apresentar, com grande clareza, a narrativa e diverte o público.
O intróito (chegança) acontece de modo “rebombante”, trata-se de um grande modelo para que o público, próximo e distante, aproxime-se e fique ligado interessadamente no que acontecerá com aquela gente “barulhenta”. Alguns grupos mais discretos que se apresentaram no evento, penso, devem ter aproveitado bem aquela lição dos commedianti dell’arte.
No início fiquei meio aflito porque a dramaturgia era muito fragmentada, mas depois dos dez primeiros minutos, tranqüilizei-me porque tudo passou a confluir para contar a história de o espetáculo de máscaras ser apresentado. Aclimatando uma tradição da commedia dell’arte, o diretor solicitou que cada personagem buscasse uma prosódia (um sotaque) característico de diferentes regiões do Brasil. Isso funciona, na maior parte das vezes. O arrebatamento chamado Ana Rosa Tezza apresentou um sotaque... mas qual? Aliás, diria que a atriz “é” um sotaque. Seu trabalho de criação é comovedor: ela se dá toda, por inteiro, sem medo!
O espetáculo tem excelentes achados, “peca”, entretanto, se se puder falar assim, no que diz respeito ao tamanho diminuto do palco. Os atores não evoluem no palco, trombam-se, o que faz a beleza estética ficar em processo de esbarramento. Passado algum tempo depois do espetáculo, penso que o sistema de iluminação também é precário, ilumina pouco e não permite ver, sobretudo, a beleza das máscaras.
Por fim, percebe-se que Roberto Innocente é um mestre e sabe perfeitamente que faz e como atingir seus objetivos estéticos. Mesmo cometendo injustiças, penso que Roberto e Lígia Veiga serem os dois melhores diretores do evento.
Experiência subterrânea
Cercado de grande curiosidade por parte dos profissionais que se encontravam no evento, afinal André Carreira é um importantíssimo pesquisador de teatro, sobretudo o teatro de rua, no sábado à noite, saindo da Fundação Cultuar, iniciaram-se as performances do espetáculo Circo negro. O texto foi adaptado do livro homônimo de Daniel Veronese pelos integrantes do grupo, sob coordenação de André Felipe Costa Silva.
Os atores do grupo vestiam-se a partir de diferentes trajes, explicitando tipos e situações sociais diferenciadas, transitando, ao que tudo indica, com situações próximas àquilo que já foi denominado de humor negro. Na primeira cena, por facada, alguém mata alguém. Ao fim da cena, evidencia-se que a morte foi uma brincadeira. Deslocando-se desse primeiro espaço e em rua próxima dali ocorre a segunda cena, difícil de ser assistida porque o público, em apertado espaço cercou a cena. Apesar de ter 1,90, confesso não ter conseguido assistir a cena. A terceira cena foi em outro lugar, igualmente estreito... A quarta cena ocorreu em uma estreitíssima viela, transversal à Praça da Matriz...
Confesso, e porque não queria correr ou brigar para assistir à cena, “desisti” do espetáculo e dirigi-me para o espaço onde ocorreria o próximo espetáculo. Por conta disso, não tenho nenhuma condição de avaliar a obra.
Ministro aulas na Escola Livre de Teatro de Santo André, nela há um núcleo de formação de diretores, atualmente sob a coordenação de Luiz Fernando Marques (do Grupo XIX de Teatro), os diretores apresentam cenas nos lugares os mais inusitados: de marquises de praças públicas a banheiros diminutos. Ao entrar em contato com tais propostas, me pergunto: para quem essas obras são feitas!?
Coletivo Pulso
Tudo no início é zen. Uma marcha, marcialmente lenta, promove o deslocamento de dois atores-músicos, de fora para dentro do espaço de representação. Aliás, e claro que cadeiras são essenciais para os mais velhos, portadores de alguma deficiência física, para mulheres gestantes, mas a totalidade dos espaços – e isso é um contrasenso para espetáculos de rua – já se definia pelas cadeiras que cercavam o espaço de representação. Voltando ao espetáculo, com o curiosíssimo título: Hai-kai – somente as nuvens nadam no fundo do rio, tudo no início intentava o silêncio, o comedimento.
O título já preconizava, prefigurava aquilo que eventualmente poderia acontecer. A inspiração para a criação de um hai-kai, trazido por musicalidade corda-sopro: acordeón-flauta que se consubstanciaria por intermédio de dois criadores, ou os dois formariam um só? Em português e ao que tudo indica em japonês, o hai-kai é criado. Criada a obra, mesclando duas culturas, imbricadas em uma só, o suscitado imagético decorrente do hai–kai “ganha o mundo”.
Todos os elementos da natureza apareceram e se transfiguraram em imagem: um conjunto de efeitos e pirotecnias irromperá a cena e deixaram impactados os espectadores. Os atores do espetáculo, de certo modo, transitam entre a interpretação, a dança, a contraregragem...
Ao fim, terminado o espetáculo, há uma grande inquietação... O espetáculo se caracteriza em um grande enigma. Como decifrá-lo? Com Clarice Lispector aprende-se que não é preciso preocupar-se com entender na medida em que viver ultrapassaria qualquer entendimento.
Em um evento da envergadura do 14º Encontro de Teatro de Rua de Angra dos Reis é fundamental que os organizadores e curadores possam programar espetáculos mais experimentais, mesmo que não se trate de um espetáculo de rua, mas que seja montado na rua, sobretudo por conta da pirotecnia, como a chuva ao final.
Galpão Cine Horto
Infelizmente, por problemas de confusão na agenda, não tive oportunidade de assistir ao espetáculo Arande Gróvore, mas os companheiros com quais conversei, rasgaram muitos elogios ao espetáculo, tanto pelo inusitado da prosódia como à delicadeza na concepção e criação da obra.
Fico devendo essa aos artistas, e, porque não sou bobo, em nada, espero poder assistir ao espetáculo brevemente.
Circo Nossotros
Em muitos aspectos, o espetáculo Famiglia Milan e o Gran Circo Guaraná com Rolha assemelha-se ao espetáculo apresentado pelos Irmãos Brothers. Trata-se de um espetáculo sem dramaturgia clássica, e que, no caso da Famiglia Milan metateatraliza suas ações em um um circo, que é o Gran Circo Guaraná com Rolha. A obra apresenta o frontispício de um circo (que esteve lindo em contraste com a bela fachada da Igreja da Matriz: o vermelho e dourado do circo, em contraste com o branco da Igreja, no escuro da noite ficou, realmente, muito belo!
Sandra Saraiva e Marcelo Milan, casados na vida real, vivem, na obra em epígrafe, um casal de malabaristas. Vestidos à moda dos anos 1920, o casal, na vida ficcional, dá um verdadeiro espetáculo de malabarismo, equilíbrio e confiança. Emociona-me sempre (e, com certeza, não só a mim) a confiança requerida e demandada por esse tipo de atração. Marcelo suporta a leve Sandra e esta entrega-se ao parceiro destemidamente.
Mesmo faltando uma dramaturgia que pudesse dar sustentação emocional à história das duas personagens circenses, os números apresentados: da sustentação ao número de bicicleta, conseguem remeter, pelo cuidado da coreografia, do figurino, do casal equilibrista..., a um contexto de antigas tradições circenses que não se vê mais... Pelo menos, à exceção dos grandes empreendimentos, nunca tive oportunidade de assistir a esse tipo de número circense, com os requintes apresentados pelo casal Saraiva/Milan. Não fossem todos os méritos apresentados, a resistência (muito bem realizada) já se caracterizaria em justo júbilo.
Ao casal parabéns e longuíssima vida!
Obs. – que, pelo menos, uma das lindas filhas do casal, tome gosto pela “coisa” e siga a tradição!
A história de Édipo
O espaço cênico delimata-se a um palco-traquitana, com função monumental. Propício a espaços abertos, os atores evoluem, sobretudo, nos planos que compõem a edificação vertical, constituídas por andaimes da Rohr. Além de espaço de representação, donde a adjetivação traquitana (que implica em diversas funções), no cenário-totem são dependurados todos os objetos de que necessitam os atores ou as personagens para apresentar a história de Édipo.
O diretor Marcelo Bones transformou o mito grego de Édipo, com o conjunto de atores do Grupo Teatro Andante, em um espetáculo absolutamente eletrizante. Já havia assistido ao espetáculo anteriormente em Belo Horizonte, durante o dia, na Universidade Federal. Havia, na ocasião, na capital mineira, ficado bastante impressionado, mas à noite e a céu aberto, na Praça Zumbi dos Palmares (e o grupo apresentou-se em uma noite que o “céu angreense explodia”) toda a sofisticação do espetáculo vem à tona e envolve o espectador. Trata-se de um espetáculo em que todos os detalhes confluem, e com critério estético, para constituir uma obra com unidade: músicas ao vivo, em concepção, exploração e concepção muito bem resolvidas; figurino vermelho com fitas cruzando e macerando o corpo, a partir dos pés (alusão, portanto, ao mito); luz absolutamente afinada ao espetáculo; o já mencionado espaço de representação; o trabalho dos atores, e sobretudo dos dois atores).
Em rápidos cinqüenta minutos – e afirmo isso, também, pelo que se podia sentir e respirar junto ao público –, houve um significativo momento de troca e de contato com uma curta, mas efetiva obra prima.
Parabéns ao grupo e seu conjunto de criadores!
III. Saideira
Voltando ao começo, reitero os agradecimentos com relação ao convite feito por Jussara Trindade e Licko Turle, à Prefeitura de Angra dos Reis e à Fundação Cultuar, na pessoa de Mário dos Anjos, aos parceiros de conversa e à alvissaríssima possibilidade de criação de um Núcleo Nacional de Pesquisadores de Teatro de Rua.
No concernente aos comentários críticos, mesmo atrasado, fiz questão de apresentar alguns pontos de vista acerca dos espetáculos assistidos, e o fiz de modo meio acelerado. A vida tem exigido tal presteza. Entretanto, penso, essa é uma alternativa para que trocas e interlocuções possam ser desenvolvidas.
A todos, coloco-me à disposição. Então, abraços fraternos do tamanho do mais amplo bem querer.
Vamos que vamos, fazendo histórias, estando na história, registrando para a criação de uma história. Ao finalizar:
Vai passar nessa avenida um samba popular (...)
Num tempo, página infeliz da nossa história,
passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações.
Dormia a nossa pátria mãe tão distraída
sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
Seus filhos erravam cegos pelo continente,
levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval,
o carnaval, o carnaval.(...).[3]
[1] Pesquisador e professor do Instituto de Artes da Unesp de São Paulo. Integrante, com justo júbilo, do Núcleo Nacional de Pesquisadores de Teatro de Rua.
[2] Mario PEDROSA. Frade cético, crianças geniais. In: Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p.177-78.
[3] Vai passar, letra de Chico Buarque de Hollanda e música de Chico Buarque de Hollanda e Francis Hime. Coletado no endereço eletrônico http://letras.terra.com.br/chico-buarque/45184/ [visitado em 08/07/2008].
Em uma de suas sempre significativas reflexões, o pensador francês Michel de Certeau afirma que passado-presente-futuro combinam-se para ressignificar as vivências cotidianas do espaço, na “arte” do caminhar. Nessa medida, a memória como algo que se produz permanentemente refere-se, sobretudo, às vivencias dos sujeitos com a espacialidade. Se –ao se lembrar de algo apresentado em um espaço – o exercício de memória (exercício mnemônico) subtrai muito da paisagem social e de tantos de seus complicadores, passado algum tempo depois do evento, é preciso um grande esforço no sentido de tentar trazer à consciência a troca de experiência simbólica, proposta pelo espetáculo na rua.
Na retomada que vou tentar desenvolver agora, muitas das impressões que percebi no público – no período compreendido pela 14ª edição do Encontro Nacional de Teatro de Rua de Angra dos Reis, em que ocorreu o evento – é possível que se percam agora. Desse modo, se se lembra da obra, lembra-se dela subsumida do social. Nas práticas cotidianas, e talvez o mesmo pudesse ser dito em relação ao produzido pela memória há uma articulação, em um processo de vivência espacial, fragmentos, resíduos, ruídos e fantasmas que se incorporam nessa vivência produtora de sentido.
Entretanto, exatamente pela viver pressupor uma dialética permanente entre o que se ganha, ao se perder e vice-versa, vou tentar apresentar algumas das apreensões como participante crítico no evento acima citado. Vale destacar que não apresentei minhas apreensões antes por conta de excessos de trabalhos e de compromissos. Ter estado na bela Angra dos Reis foi um triplo privilégio, primeiro pela querida dupla formada por Licko e Jussara, a quem, e de público, agradeço o convite e a confiança; segundo pela oportunidade de assistir e trocar tantas impressões e apreensões durante o período de duração do evento e também pela acolhida, na bela – do ponto de vista humano e do natural – Angra dos Reis.
Em sua 14ª edição, o Encontro Nacional de Teatro de Rua, acontecido entre 07 e 10 de maio de 2009, em Angra dos Reis, será revisitado – e agora, cidade de São Paulo, três de junho do mesmo ano – com o objetivo de trazer alguns fragmentos de belos espetáculos que por lá se apresentaram.
Primeiro mérito precisa ser tributado à comissão de seleção, que soube criar uma programação representativa de diferentes experiências que podem ser levadas para a rua, objetivando principalmente a concepção e repertório, tanto dos fazedores de arte como aos apreciadores do teatro. Um painel diverso enriquece e amplia a potência de quem passa pelas ruas e, num momento de ruptura de sua cotidianidade dela espera algo significativo.
Apesar de Jussara Trindade, gentilmente, ter enviado todas as fichas dos participantes, algumas chegaram sem qualquer informação (parece que o arquivo veio “corrompido”), motivo pelo qual evito citar nomes de pessoas. Outra coisa, como já faz algum tempo em que o evento foi apresentado, é possível, mesmo fazendo algumas anotações, que me confunda em uma ou outra coisa. Desse modo, peço desculpas, caso tenha cometido algum impropério, tenha misturado impressões, tenha, enfim, trocado bolas...
Por último, não pude assistir a todos os espetáculos do evento. Desse modo, não vou, infelizmente (nesse momento, mas atento a outras oportunidades que apareçam), comentar todos os espetáculos. Positivíssimo, e facilitador, e pioneiro, e alentador foi a constituição de Núcleo Nacional de Pesquisadores de Teatro de Rua. Assim, trocas e encontros apresentam-se como vislumbres para um processo de trocas, permanentes, espero e vou batalhar.
Quis escrever esse texto (mesmo correndo “certo perigo”), para apresentar algumas impressões críticas, tanto por haver me comprometido com essa tarefa como porque acredito ser fundamental realizar todos os esforços no sentido de documentar as experiências e espetáculos que são levados às ruas, parafraseando Gonzaguinha: “Dessa imensa avenida chamada Brasil.”asiado todas as fichas, algumasa em deslocamento.onagem e atriz enfrentam a ficç
II. APONTAMENTOS DO ASSISTIDO
Cia. Carroça de Mamulengos
Oficialmente, o evento inicia-se muito bem com o digníssimo grupo cearense, de Juazeiro do Norte, Cia. Carroça de Mamulengos apresentando Histórias de teatro e circo. Sob uma lona, por conta de durante boa parte da madrugada ter chovido, o espetáculo atrasa sua apresentação. Foi preciso transportar o equipamento de um lugar para outro.
Então, já no espaço de apresentação, há tempo para acompanhar a “passagem de som”. Com o violão dando completude ao corpo, a maestrina Maria Gomide – filha mais velha (?) da surpreendente mãe Schirley França: que tão belos seres colocou no mundo e em cena – coordenou trabalho de técnicos, no sentido de o som estar perfeito. No palco, acompanhando as evoluções de Maria, Beto Lemos e sempre com um sorriso rasgado, participava da festa também. Prova técnica, mas com os verdes olhos de Maria pousados na criançada, que lota a platéia, a todo o momento.
No espaço de representação, um palco formado por tábuas perpendiculares à platéia, limitado por tapadeira-empanado de chitão, prefigura uma teia de aranha. O atraso para dar início ao espetáculo foi grande, mas o prazer de assistir àquela passagem de som fez com que não se percebesse tanto o tempo correndo.
O espetáculo, com direção, criação e concepção de Carlos Gomide, inicia-se com um galo cenográfico e manipulado, que desfila sobre o empanado. O galo anuncia o início do espetáculo e o despertamento de vários bichos, que serão vestidos e mimados pelos atores da família...
Na platéia a criançada vibra entusiasmada pelo desfilar de diversos bichos, e fica enlouquecida quando um deles, o dragão Xodó, solta fogo pela boca. Pirotecnia do bicho e da platéia. Emociona ver a emoção infantil, partilhada, contaminando alguns duros corações.
Bastante emocionado por ver uma família tão linda, junta, apresentando-se, de modo tão harmonioso, penso porque gosto cada vez menos de espetáculos apresentados no palco... Nesse momento de devaneio reflexivo, uma criança desprende-se da mãe e vai até um “carneirinho” em cena para acariciá-lo... Ela o acaricia e conversa com ele: o que ela diz, claro, é um segredo!!! É isso, no devaneio, a resposta. No espetáculo de rua, que vislumbra a troca de relação e de experiência, como afirma a atriz Selma Pavanelli – do grupo paulistano Buraco d’Oráculo –, não se pratica o chamado “autismo estético”: atores e público se percebem e ressignificam, em igualdade, um momento vivido. Nenhuma parede ou muro existe para segregar, separar: os dois conjuntos se veem, ouvem o que um diz ao outro e preenchem uma relação presencial, repleta de tantas lacunas.
Isso me remete à realidade social de que faço parte, e ainda em estado de devaneio – mas sem perder dos olhos e do sentimento que corre o espetáculo –, indago-me acerca dos legisladores. Esses seres já foram crianças, têm filhos, netos, sobrinhos... veem as crianças e parecem esquecer de como são simples a totalidade de suas necessidades. Ao esquecer isso, esquecem tantas promessas feitas e que, por meio de votos, foram eleitos, sobretudo por tantos pais e mães, cujos filhos crescem, mas sem que cresçam as oportunidades que se lhes deve.
Apontando a importância da arte no processo de formação da criança, o importantíssimo crítico de artes plásticas, Mário Pedrosa, no texto Frade cético, crianças geniais, afirma:
A mais autêntica finalidade desse aprendizado [educação pela arte] é mesmo a de preparar a meninada para pensar certo, agir com justeza, manipular as coisas judiciosamente, julgar pelo todo e não parcialmente, apreciar com proporção e confiança, gesticular com propriedade, utilizar-se das mãos com precisão, tirar alegria não só das grandes coisas e acontecimentos da vida, como, também, dos insignificantes e pequeninos. Ah! Esses que assim se conduzirem quando adultos serão artistas, mesmo que nunca mais peguem num lápis ou num pincel. Verão a vida como uma sadia e bela obra de arte a preservar... e apreciarão, acima de tudo, o trabalho bem realizado, pois neste sentirão a participação carinhosa do homem, penhor do racional, a emprestar-lhe um valor estético que transcende até ao ético.[2]
Por intermédio de uma dramaturgia em forma de painel, e penso que aí reside o maior problema do belo espetáculo, as cenas – costuradas principalmente pelas músicas que apresentam uma narrativa épica – estruturam-se a partir de diferentes tipos de manipulação e expedientes característicos do espetáculo misto de rua. Os atores têm domínio do que fazem: tem pleno domínio da cena e da relação com a platéia; o figurino é clássico, bem talhado e colorido; as músicas são bem tocadas e cantadas...
Em francês, fada escreve-se fée; dessa palavra surgiu um tipo de espetáculo cujo propósito é fazer aquilo que toda fada deve proporcionar: encantamento. Então, surge a féerie. Aclimatada ao português, a palavra, referindo-se a encantamento, foi grafada como feérico... Pensem como são feéricos os espetáculos das escolas de samba no Brasil, as festas do boi etc. Em teatro, são chamados de espetáculos feéricos, sobretudo, aqueles mistos, que misturam dança, canto, cenas dialogadas curtas... conhecidos como teatro de revista.
O circo é feérico... Muitos espetáculos de rua também. Histórias de teatro e circo é feérico e encanta. Parabéns à ilustre família de artistas abrigadas pela Carroça de Mamulengos.
Cia. Chegança
No primeiro dia de evento, o segundo grupo a apresentar-se, vindo de São Luís do Maranhão, foi a Cia. Chegança, dirigida por Michelle Cabral. Adotando proposição de processionalidade, os atores conclamam o público para segui-los saindo da Praça do Porto até a Praça Codrato Vilhena.
Referindo ao ocorrido comigo, sem generalizar, evidentemente, o primeiro problema enfrentado pela Cia. Chegança diz respeito ao fato de “certa contaminação emocional” proporcionada pelo espetáculo anterior. Tomando Kant, estremeci de prazer diante da beleza proporcionada pelo espetáculo da Carroça de Mamulengos. Os integrantes do grupo do Maranhão, e isso era visível, davam o seu melhor, mas, ao nos conduzir de um ponto a outro, o cantar de seus integrantes apresentava-se sem potência, sem brilho, sem jocosidade. Nenhuma vez, os atores tentaram instigar o público a cantar junto, ainda que fosse um verso, um refrão... Seguíamos os atores, mas apartados do espetáculo. O canto de entrada, que na tradição popular, precisa ser forte e conclamante, anunciante da companhia que chega não cumpriu sua predestinação.
O título da obra, bastante sugestivo: A mulher que vendeu o marido por R$ 1,99, do mesmo modo como a chegança, não buscou o público, não se relacionou – solicitando cumplicidade, sugestões, ajuda – com a platéia: permaneceu enterrado em si mesmo. Insisto que os atores, debaixo de um sol intenso e forte, davam o seu máximo, mas o espetáculo não conseguia manifestações de cumplicidade. Usando uma metáfora, sobrou alguma coisa de alvenaria imaginária (alusão à quarta parede) impedindo uma relação e troca de experiência com a platéia.
Era claro haver uma concepção de espetáculo, banhada por um conjunto de tradições populares, do cordel a alguns passos de dança – que Mario de Andrade nomeou dança dramática... –, passando pelo ritmo musical, mas, e infelizmente, em Angra dos Reis, o espetáculo não cumpriu sua destinação intrínseca enquanto espetáculo popular de rua. Talvez os atores precisassem, naquele momento, de mais um período de treinamento e de conhecimento do requerido para as manifestações de rua.
Como observação final, à saída do espetáculo, e um pouco mais distante, não deixa de ser digno de nota, o fato de o Sr. vice-prefeito, segundo me informaram, em nome da gestão Tuca Jordão, distribuir rosas às mulheres passantes por conta de, no dia seguinte comemorar-se, oficialmente, o chamado “dia das mães”. Desse modo, por justa razão, depois de a mulher da peça vender seu “folgado marido” por R$ 1,99, todas as outras, alegorizadas ou não nela, eram premiadas com uma flor.
Irmãos Brothers
À noite, ainda no primeiro dia de evento do Festival, na Praça da Matriz, foi a vez do grupo, sediado no Rio de Janeiro, Irmãos Brothers mostrar o seu a que viemos, “mostrar o seu valor”. Nessa primeira noite, já era possível perceber o sucesso do evento: a praça estava absolutamente lotada, “gente saindo pelo ladrão”. Com direção de Jorge Fernando e batizado 15 anos dos Irmãos Brothers, o espetáculo oferece ao público uma espécie de “melhores momentos de seu repertório”, inserindo-se na proposição de espetáculo de variedades, decorrente do significativo período de existência do grupo.
Cumprindo rigorosamente aquilo com o que se compromete e apresenta em suas peças gráficas, os “manos em duplicidade” conseguem embalar e envolver a platéia durante todo o curto tempo, que demora o espetáculo. Os integrantes do grupo apresentam vários números juntos, e cada integrante tem seu momento solo, relacionando-se, muitíssimo bem, com a platéia. Nesse particular, e vale cumprimentar o formato sugerido pelos coordenadores do Festival e pela Cultuar – Fundação de Cultura de Angra dos Reis, os integrantes dos grupos acompanham todo o festival. Desse modo, imagino que os atores da Cia. Chegança devam ter se divertido bastante e apreendido inúmeras probabilidades de relação com a platéia.
O espetáculo foi uma verdadeira festa e deliciosamente divertido. Entretanto, e por já conhecer o trabalho do grupo, prefiro os Irmãos Brothers apresentando espetáculos a partir de uma dramaturgia com personagens, narrativa, transformação de objetos...
Insisto em que a explicitação de meu próprio gosto pessoal não tira o mérito do grupo e do trabalho!
Cia. Mamulengo da Folia
O segundo dia da 14ª edição do Festival Nacional de Teatro de Rua de Angra dos Reis começa muito bem. Na Praça do Porto, Danilo Cavalcanti, um atual paulistano, que já chamei de “mezzo nordestino e meio italiano”, traz a eloqüência popular nordestina e promove sua explosão, por meio de bonecos, prosódia, música e mentalidade pernambucanas.
Para fazer o reconhecimento do público, Danilo Cavalcanti, na condição de boneco-bicicleteiro passeia pelo espaço em que o espetáculo irá ser apresentado.
Difícil permanecer alheio, triste, “angelical”, inocente às personagens da tradição popular nordestinas. É certo que a narrativa é contada tomando a tradição da literatura de cordel, mas Danilo Cavalcanti consegue mimar a todas elas carregando em si uma longa e significativa tradição popular. Escondido atrás do empanado, mas de olhos firmes na platéia, Mestre Danilo Cavalcanti envolve, emociona, encanta pelo caráter popular da malandragem nordestino-brasileira. Nesse sentido a narrativa aparece repleta de expressões e alusões grotescas (que podem ser chamadas também de escatológicas), por exemplo, há uma personagem chamada Cabo Setenta (que existe também na obra Torturas de um coração de Ariano Suassuna). Ocorre que, de acordo com prosódia nordestina, as sílabas são faladas de modo intenso, à exceção da “ten”, a personagem é apresentada como “cabusetenta”... é clara a alusão ao órgão sexual feminino.
O espetáculo ganha um tom mais característico e transporta para qualquer uma e todas as praças nordestinas (localizadas em qualquer Estado nordestino ou paulista ou carioca ou brasileiro) pelo trio de músicos: sanfona, zabumba e triângulo embalam as personagens e a narrativa apresentada por Danilo Cavalcanti.
O espetáculo A folia no Terreiro de Seu Mané Pacaru imprimi a nós todos, brancos ou negros, nascido em qualquer região do País de que temos uma raiz próxima, algo imaterial a zelar, a preservar e com o qual nos embalar... parafraseando Noel Rosa, a partir de uma língua que já passou de português.
Grande Cia. Brasileira de Mystérios e Novidades
Caminhando em direção em que o próximo espetáculo seria apresentado, entrei para conhecer a Igreja de Santa Luzia. Linda construção inaugurada em 13 de dezembro de 1632. A data em princípio, o 13 de dezembro me terrificou, afinal, muitos séculos depois, nesse mesmo dia, em 1968, o País foi mergulhado em uma de suas piores ditaduras... Depois desse choque momentâneo, a monumentalidade e, sem qualquer paradoxo, a simplicitude da igreja encantam. Fiquei imaginando ao olhar tantos detalhes, os primeiros trabalhadores que ergueram aquela construção, tantos outros em várias reformas de que devem ter acontecido. Quantos fiéis ajoelharam-se naquele chão, quanta fé e esperança depositadas nos santos de lá. No breve momento em que lá estive, algumas pessoas rezavam fervorosamente...
Saio da bela Igreja reprovando apenas a placa que solicita aos fiéis qualquer ajuda econômica para a salvação de suas almas... Nesse dia 08 de maio, às 16h, constava da programação do Festival o espetáculo Ciclope, fundamentado no mito grego homônimo, apresentado pela Grande Cia. Brasileira de Mystérios e Novidades do Rio de Janeiro, mas fundada em São Paulo, em 1990, e dirigida pela instigante e sempre criativa Lígia Veiga. A nova e bela Praça Zumbi dos Palmares (Largo do Mercado Municipal) preencheu-se do mais entusiasmado espetáculo ritual. A apresentação inicia-se com deidades gregas, ou não seriam ajoiés/ekédis da tradição do candomblé? O fato é que as sincréticas personagens montam no espaço-terreiro-templo um monumento: uma cabana.
Várias hipóteses podem ser formuladas acerca da cabana, mas, para lembrar o empenho e a pesquisa de Lígia Veiga, é bom lembrar que a palavra grega skéne, cujo significado é cena, tem como raiz sk, que indica palavras que selecionam, abrigam o conceito de fazer sombra. Desse modo, sk caracteriza-se na raiz do verbo skenéo que significa construir tenda. Esse parêntese é aqui apresentado para demonstrar que a encenadora do espetáculo transita esteticamente com significativo processo de pesquisa.
Tão logo a tenda mítico-cosmogônica é montada, aparece uma sugestiva carroça e nela o espaço que será consagrado às musicistas. Trata-se, sem dúvida, se se puder falar desse modo, do ponto alto do espetáculo. A sonoridade criada pelas mulheres é deslumbrante: são musas-musicistas surpreendentes. A pesquisa sonora com instrumentos inusitados é arrebatador.
Ciclope entra, e em disputa pelo poder, acaba arrebanhando sátiros, cuja coriféia é uma negra atriz linda Mafalda Pequenino (e peço desculpas por não apresentar outros nomes a ficha técnica do espetáculo chegou-me corrompida), que singra o espaço, em puro ato de enfrentamento: personagem e atriz enfrentam tanto a ficção da obra como a realidade das ruas!
O espetáculo é grandiloqüente, ousado e tem estofo de quem sabe o porquê vai para a rua e a quem o espetáculo deve atingir. Apesar da grandiosidade da obra, há, ainda (não sei se premeditado ou não), certa limpeza a ser promovida. Dentre elas, destacaria muitas das falas coletivas do coro. Certa histeria corporal da personagem coletiva tem um caráter excessivo (atores parecem esquecer que o espetáculo é feito para um público) e não se consegue ouvir o que fala a personagens, sobretudo quando se encontra em deslocamento.
De qualquer forma, penso, pode ficar contente esse conjunto de criadores pela obra construída. Lígia Veiga é uma grande “maestrina da cena” e organizou um grande momento de criação coletivo.
Que o espetáculo tenha uma grande vida e que consiga ser apresentado muitas vezes!
Cia. Gente de Teatro
A gente morena, chegando da Bahia – terra de Assis Valente e de tantos outros artistas – veio para mostrar o seu valor. Como não são bobos, eles chegam em coro e vêm supercoloridos, usando, como intróito de chegança, o Abre alas da grande compositora Chiquinha Gonzaga. Na chegança, e à semelhança do adotado como prólogo na forma da revista teatral e certas manifestações de rua, o elenco apresenta-se, e, também, ao diretor do espetáculo, Luis Bandeira.
Nesse segundo dia de evento, e com tantos espetáculos já assistidos, não deixa de ser louvável tratar-se do primeiro grupo a apresentar-se sem microfone. Não vou tratar dessa questão, mas quero lembrar que são muitos e polêmicos os pontos de vista, de puristas e tradicionalistas: premidos ou não por ortodoxias, que se posicionam de modos opostos acerca do uso do microfone em espetáculos de rua. Ainda com relação a espetáculo de rua e na rua também há pontos de vistas diferenciados, mas não cabe, nesse momento, tal discussão. Cabe, sim, o registro de que a totalidade dos integrantes do grupo conseguiu ser ouvido, durante a lotadíssima apresentação do espetáculo, na Praça da Matriz.
Apresentado o coro, os pregoeiros apresentam-se individualmente, cada um vendendo seus produtos. Nessa venda, sobretudo pelo vendedor de bananas e depois pelo vendedor de rolinhas, há muita ambigüidade e deliciosa alusão sexual. Nesse momento, o público já é capturado pelos atores e pelo espetáculo. Por meio dessa percepção, e conscientes de que já houve uma conquista da platéia, a maioria dos atores, joga e muito bem, trocando experiência. Se na noite anterior, naquele mesmo espaço, os Irmãos Brothers haviam brincado com a platéia, com os atores da Cia. Gente de Teatro, mesmo sem ir ao centro da cena, a verve de alguns atores, fez com que a platéia fosse a oitava personagem.
Os atores transitam com a tradição das narrativas populares e mesclam no espetáculo a criação de personagens com a inserção épico-narrativa. Duas das atrizes, a dona da barraca e a vendedora de ervas, irreconhecível, sem maquiagem são excelentes. Uma das atrizes, a mais alta, destoa do conjunto, inclusive na maquiagem... Todas as mulheres carregam nas tintas e no colorido da maquiagem, mas esta última usa uma maquiagem clássica.
De qualquer forma, mesmo havendo alguma dissonância, o conjunto e afinado e afiado, e, pode-se dizer, herdeiro de uma certa tradição da comédia popular, maravilhosamente bem aclimatada ao nordeste brasileiro. Bahia veio muito bem representada com o seu Cordel do pega pra capá..
Cia. da Lua
Primeiro grupo da cidade a apresentar-se no evento. Infelizmente, o local escolhido – a Bica da Carioca, local erigido em 1842 – pelo fato de ser um grupo local e ter levado um número grande de espectadores, fez com que aqueles que chegaram ao espetáculo, mesmo na hora marcada, não conseguissem ver o espetáculo. O local escolhido prejudicou sobremodo a apreensão ao trabalho.
Do que deu para perceber, podem ser destacados alguns problemas. Além de o local escolhido ter sido equivocado, trata-se de uma obra concebida para palco e não para rua. Desenhos de cena, texto (extremamente retórico e ligado ao que se chama de teatro de conversação), entradas e saídas amparadas no conceito de coxias, altura da voz, a iluminação... Tudo característico de teatro de caixa. Nenhum problema há em que um espetáculo de caixa vá para a rua, entretanto, esse deslocamento pede mudança dos expedientes cênicos.
Do ponto de vista temático, e a obra, segundo consta, desenvolve-se na década de quarenta do século XIX, o ponto de vista é da classe dominante. O ator que faz o escravo aparece (e isso é questão de concepção de quem dirige) de modo arquejado e meio néscio. Como todas as outras personagens são desenhadas de “modo ereto”, a comparação é inevitável... Trata-se de uma personagem próxima ao estereótipo, o que é uma pena. O olhar a partir do qual a personagem é vista e concebida, sem dúvida, corresponde a como certa classe dominante escravagista concebia o negro.
Apesar de esforço do conjunto, no sentido, por exemplo, de certa reconstituição do figurino, um dos atores – e não acreditei nisso quando vi, e depois alguém também chamou a atenção para isso – usava um brinco em uma das orelhas... Como havia a intenção de recuperação de certa visualidade na reconstituição da obra, esse deslize foi muito mal. O diretor precisa olhar esses detalhes.
Penso que os integrantes da Cia. da Lua – e lembro da atriz que fez a mãe no espetáculo ter participado do processo interventivo desenvolvido pelo mago de todas as praças, Amir Haddad – devem ter aproveitado o evento como um todo. Penso que se houve troca e interlocução, mais pessoas devem ter apresentado ao conjunto que apresentou A lenda da Bica da Carioca, alguns dos pressupostos de quem se apresenta nas ruas.
Assim, que eu possa ver esse mesmo conjunto, em outro ou no mesmo espetáculo, promovendo, por meio da escuta e dos procedimentos característicos de quem escolhe a rua, trocas com a platéia.
Cia. de Teatro Nu Escuro
Diretamente do Estado de Goiás, e passando por outros encontros e festivais, a Cia. de Teatro Nu Escuro escolheu, como texto a conferir um ponto de partida ao espetáculo, o “clássico” A farsa do Mestre Pierre Pathelin, de autor anônimo francês do século XIV/XV.
Decorrente do espetáculo anterior, apresentado relativamente perto da Praça da Matriz, novamente lotada, o espetáculo teve de sofrer um atraso para que o público que assistiu ao espetáculo da Cia. da Lua tivesse tempo de chegar ao espaço em que seria apresentado O Cabra que matou as cabras. Assim, mas não pelo atraso ocorrido para iniciar a apresentação do espetáculo, tendo em vista tratar-se de uma proposta da direção, os atores-personagens passeiam por entre o público. Um desses atores, o tal Cabra, passa com uma garrafa de – imagino – aguardente, talvez para deixar o “miolo mais mole” da platéia. Afinal, ele será julgado, logo mais, em uma cena de julgamento.
Opção do jovem diretor – Hélio Fróes, e o afinadíssimo grupo demonstra domínio da cena, das relações de troca com a plateia –, os atores não usam microfone, e são absolutamente ouvidos pela grande platéia presente ao espetáculo. Trata-se do espetáculo mais escatológico de todos a se apresentar na 14ª edição do Encontro Nacional de Teatro de Teatro de Rua. Desse modo, como já havia mencionado antes o conceito, talvez agora, e brevemente, fosse importante apresentar alguns indicadores conceituais do termo.
Parte significativa dos termos e conceitos utilizados em teatro foi cunhada pelos gregos da Antiguidade clássica e transposta aos que vieram... Hoje, o conceito de escatologia refere-se, sobretudo, a comportamento mal educado, deselegante, não civilizado, decorrente de skatoslogos: referindo-se a doutrina que disserta sobre as fezes. Tendo uma pequena variação gráfica eskhatoslogos, o conceito refere-se a doutrina final do tempo.
O conceito aqui utilizado refere-se, portanto, à primeira conotação. As personagens da montagem do grupo de Goiânia são personagens, fazendo uma alusão ao filme de Ettore Scola, além de sexualizadas: feias, sujas e malvadas.
Diferentemente de A lenda da Bica da Carioca, neste espetáculo, e não apenas pelo texto original, o ponto de vista da encenação corresponde, como se espera de um espetáculo popular, não é o do comerciante ou do advogado, mas ao do empregado. O ator que apresenta esta personagem (o Cabra) é excelente. Tem domínio de seu fazer e do modo como lida com a platéia. De modo semelhante, precisam, também, ser destacadas as atrizes que fazem o advogado e sua mulher.
Parabéns a todo o grupo e ao seu belo trabalho. Foi uma excelente finalização de segundo dia de jornada.
Grupo Pombas Urbanas
O queridíssimo Lino Rojas, que tanta falta faz a tantos de nós, muito deixou. Pelo exemplo comportamental e de militância, pelos trabalhos apresentados, pela crença e tenacidade com a qual sempre abraçou o trabalho comunitário. Trata-se de um artista digno, avesso às badalações, e que escolheu um bairro muito distante da zona leste da cidade de São Paulo para disseminar e trocar seus tantos saberes. O Pombas Urbanas, em seus tantos tentáculos, tanto sociais como estéticos, representa uma continuidade do trabalho de Lino Rojas. Assim, pelo menos para mim, vê-los em cena significa, de modo algum aprisioná-los ao mestre, mas, o que me deixa muito feliz, constatar – a partir da mudança dos tempos – uma sequência àquele trabalho.
Apresentado o argumento inicial, penso poder, e como o fiz pessoalmente ao Adriano Mauriz, discorrer acerca de alguns problemas acerca do espetáculo. Adotando algumas determinações do teatro épico, os seis atores do espetáculo dividem-se, todo o tempo em representar e contar as duas histórias que compõem o espetáculo. O primeiro problema, e também de acordo com tantos colegas com os quais tive a oportunidade de conversar, decorre dos textos escolhidos. A primeira delas, decorrente de uma dor de dentes, tem uma cotidianidade absolutamente comum, mas sem qualquer atrativo alegórico mais interessante. A segunda, totalmente alegórica, ao contrário da primeira, é excessivamente alegórica. Desse modo, do ponto de vista temático, entre uma e outra história, os extremos parecem não se encontram na obra. Desse modo se a segunda história alegoriza a vida cachorra, por que pintar o ator como se fora cachorro? Não se trata de uma alegoria?
Os atores têm senso e domínio absoluto do espaço de representação e do pressuposto pelo teatro de rua, tentam processos de troca, mas tanto as discussões propostas pelos textos como as proposta de encenação parecem não ajudar. De todos os espetáculos assistidos até então, na Praça da Matriz, cujo público foi aumentando dia a dia, Histórias para serem contadas foi aquele em que houve um abandono maior durante o espetáculo, terminando, também, com um menor número de pessoas na praça.
Afirmaram alguns parceiros de São Paulo que, originalmente, o espetáculo compreendia três histórias, e que, por problemas de entendimento, a terceira foi suprimida. Então, o tão grande esforço feito (e é muito perceptível isso) pelos atores decorre da ausência da terceira ou pelo problema, mesmo, com o próprio espetáculo.
Espero, e a visita já está marcada, assistir a muitos espetáculos do grupo. Por enquanto, ficou a potência do grupo, mas não um resultado significativo.
Grupo Arte da Comédia
Sob o curioso título de Aconteceu no Brasil, enquanto o ônibus não vem, o grupo curitibano, dirigido pelo italiano Roberto Innocente. Assim, por tratar-se de um mestre, o diretor, que assina também o canovaccio, o espetáculo acontece maravilhosamente. Comunica-se com o público, consegue apresentar, com grande clareza, a narrativa e diverte o público.
O intróito (chegança) acontece de modo “rebombante”, trata-se de um grande modelo para que o público, próximo e distante, aproxime-se e fique ligado interessadamente no que acontecerá com aquela gente “barulhenta”. Alguns grupos mais discretos que se apresentaram no evento, penso, devem ter aproveitado bem aquela lição dos commedianti dell’arte.
No início fiquei meio aflito porque a dramaturgia era muito fragmentada, mas depois dos dez primeiros minutos, tranqüilizei-me porque tudo passou a confluir para contar a história de o espetáculo de máscaras ser apresentado. Aclimatando uma tradição da commedia dell’arte, o diretor solicitou que cada personagem buscasse uma prosódia (um sotaque) característico de diferentes regiões do Brasil. Isso funciona, na maior parte das vezes. O arrebatamento chamado Ana Rosa Tezza apresentou um sotaque... mas qual? Aliás, diria que a atriz “é” um sotaque. Seu trabalho de criação é comovedor: ela se dá toda, por inteiro, sem medo!
O espetáculo tem excelentes achados, “peca”, entretanto, se se puder falar assim, no que diz respeito ao tamanho diminuto do palco. Os atores não evoluem no palco, trombam-se, o que faz a beleza estética ficar em processo de esbarramento. Passado algum tempo depois do espetáculo, penso que o sistema de iluminação também é precário, ilumina pouco e não permite ver, sobretudo, a beleza das máscaras.
Por fim, percebe-se que Roberto Innocente é um mestre e sabe perfeitamente que faz e como atingir seus objetivos estéticos. Mesmo cometendo injustiças, penso que Roberto e Lígia Veiga serem os dois melhores diretores do evento.
Experiência subterrânea
Cercado de grande curiosidade por parte dos profissionais que se encontravam no evento, afinal André Carreira é um importantíssimo pesquisador de teatro, sobretudo o teatro de rua, no sábado à noite, saindo da Fundação Cultuar, iniciaram-se as performances do espetáculo Circo negro. O texto foi adaptado do livro homônimo de Daniel Veronese pelos integrantes do grupo, sob coordenação de André Felipe Costa Silva.
Os atores do grupo vestiam-se a partir de diferentes trajes, explicitando tipos e situações sociais diferenciadas, transitando, ao que tudo indica, com situações próximas àquilo que já foi denominado de humor negro. Na primeira cena, por facada, alguém mata alguém. Ao fim da cena, evidencia-se que a morte foi uma brincadeira. Deslocando-se desse primeiro espaço e em rua próxima dali ocorre a segunda cena, difícil de ser assistida porque o público, em apertado espaço cercou a cena. Apesar de ter 1,90, confesso não ter conseguido assistir a cena. A terceira cena foi em outro lugar, igualmente estreito... A quarta cena ocorreu em uma estreitíssima viela, transversal à Praça da Matriz...
Confesso, e porque não queria correr ou brigar para assistir à cena, “desisti” do espetáculo e dirigi-me para o espaço onde ocorreria o próximo espetáculo. Por conta disso, não tenho nenhuma condição de avaliar a obra.
Ministro aulas na Escola Livre de Teatro de Santo André, nela há um núcleo de formação de diretores, atualmente sob a coordenação de Luiz Fernando Marques (do Grupo XIX de Teatro), os diretores apresentam cenas nos lugares os mais inusitados: de marquises de praças públicas a banheiros diminutos. Ao entrar em contato com tais propostas, me pergunto: para quem essas obras são feitas!?
Coletivo Pulso
Tudo no início é zen. Uma marcha, marcialmente lenta, promove o deslocamento de dois atores-músicos, de fora para dentro do espaço de representação. Aliás, e claro que cadeiras são essenciais para os mais velhos, portadores de alguma deficiência física, para mulheres gestantes, mas a totalidade dos espaços – e isso é um contrasenso para espetáculos de rua – já se definia pelas cadeiras que cercavam o espaço de representação. Voltando ao espetáculo, com o curiosíssimo título: Hai-kai – somente as nuvens nadam no fundo do rio, tudo no início intentava o silêncio, o comedimento.
O título já preconizava, prefigurava aquilo que eventualmente poderia acontecer. A inspiração para a criação de um hai-kai, trazido por musicalidade corda-sopro: acordeón-flauta que se consubstanciaria por intermédio de dois criadores, ou os dois formariam um só? Em português e ao que tudo indica em japonês, o hai-kai é criado. Criada a obra, mesclando duas culturas, imbricadas em uma só, o suscitado imagético decorrente do hai–kai “ganha o mundo”.
Todos os elementos da natureza apareceram e se transfiguraram em imagem: um conjunto de efeitos e pirotecnias irromperá a cena e deixaram impactados os espectadores. Os atores do espetáculo, de certo modo, transitam entre a interpretação, a dança, a contraregragem...
Ao fim, terminado o espetáculo, há uma grande inquietação... O espetáculo se caracteriza em um grande enigma. Como decifrá-lo? Com Clarice Lispector aprende-se que não é preciso preocupar-se com entender na medida em que viver ultrapassaria qualquer entendimento.
Em um evento da envergadura do 14º Encontro de Teatro de Rua de Angra dos Reis é fundamental que os organizadores e curadores possam programar espetáculos mais experimentais, mesmo que não se trate de um espetáculo de rua, mas que seja montado na rua, sobretudo por conta da pirotecnia, como a chuva ao final.
Galpão Cine Horto
Infelizmente, por problemas de confusão na agenda, não tive oportunidade de assistir ao espetáculo Arande Gróvore, mas os companheiros com quais conversei, rasgaram muitos elogios ao espetáculo, tanto pelo inusitado da prosódia como à delicadeza na concepção e criação da obra.
Fico devendo essa aos artistas, e, porque não sou bobo, em nada, espero poder assistir ao espetáculo brevemente.
Circo Nossotros
Em muitos aspectos, o espetáculo Famiglia Milan e o Gran Circo Guaraná com Rolha assemelha-se ao espetáculo apresentado pelos Irmãos Brothers. Trata-se de um espetáculo sem dramaturgia clássica, e que, no caso da Famiglia Milan metateatraliza suas ações em um um circo, que é o Gran Circo Guaraná com Rolha. A obra apresenta o frontispício de um circo (que esteve lindo em contraste com a bela fachada da Igreja da Matriz: o vermelho e dourado do circo, em contraste com o branco da Igreja, no escuro da noite ficou, realmente, muito belo!
Sandra Saraiva e Marcelo Milan, casados na vida real, vivem, na obra em epígrafe, um casal de malabaristas. Vestidos à moda dos anos 1920, o casal, na vida ficcional, dá um verdadeiro espetáculo de malabarismo, equilíbrio e confiança. Emociona-me sempre (e, com certeza, não só a mim) a confiança requerida e demandada por esse tipo de atração. Marcelo suporta a leve Sandra e esta entrega-se ao parceiro destemidamente.
Mesmo faltando uma dramaturgia que pudesse dar sustentação emocional à história das duas personagens circenses, os números apresentados: da sustentação ao número de bicicleta, conseguem remeter, pelo cuidado da coreografia, do figurino, do casal equilibrista..., a um contexto de antigas tradições circenses que não se vê mais... Pelo menos, à exceção dos grandes empreendimentos, nunca tive oportunidade de assistir a esse tipo de número circense, com os requintes apresentados pelo casal Saraiva/Milan. Não fossem todos os méritos apresentados, a resistência (muito bem realizada) já se caracterizaria em justo júbilo.
Ao casal parabéns e longuíssima vida!
Obs. – que, pelo menos, uma das lindas filhas do casal, tome gosto pela “coisa” e siga a tradição!
A história de Édipo
O espaço cênico delimata-se a um palco-traquitana, com função monumental. Propício a espaços abertos, os atores evoluem, sobretudo, nos planos que compõem a edificação vertical, constituídas por andaimes da Rohr. Além de espaço de representação, donde a adjetivação traquitana (que implica em diversas funções), no cenário-totem são dependurados todos os objetos de que necessitam os atores ou as personagens para apresentar a história de Édipo.
O diretor Marcelo Bones transformou o mito grego de Édipo, com o conjunto de atores do Grupo Teatro Andante, em um espetáculo absolutamente eletrizante. Já havia assistido ao espetáculo anteriormente em Belo Horizonte, durante o dia, na Universidade Federal. Havia, na ocasião, na capital mineira, ficado bastante impressionado, mas à noite e a céu aberto, na Praça Zumbi dos Palmares (e o grupo apresentou-se em uma noite que o “céu angreense explodia”) toda a sofisticação do espetáculo vem à tona e envolve o espectador. Trata-se de um espetáculo em que todos os detalhes confluem, e com critério estético, para constituir uma obra com unidade: músicas ao vivo, em concepção, exploração e concepção muito bem resolvidas; figurino vermelho com fitas cruzando e macerando o corpo, a partir dos pés (alusão, portanto, ao mito); luz absolutamente afinada ao espetáculo; o já mencionado espaço de representação; o trabalho dos atores, e sobretudo dos dois atores).
Em rápidos cinqüenta minutos – e afirmo isso, também, pelo que se podia sentir e respirar junto ao público –, houve um significativo momento de troca e de contato com uma curta, mas efetiva obra prima.
Parabéns ao grupo e seu conjunto de criadores!
III. Saideira
Voltando ao começo, reitero os agradecimentos com relação ao convite feito por Jussara Trindade e Licko Turle, à Prefeitura de Angra dos Reis e à Fundação Cultuar, na pessoa de Mário dos Anjos, aos parceiros de conversa e à alvissaríssima possibilidade de criação de um Núcleo Nacional de Pesquisadores de Teatro de Rua.
No concernente aos comentários críticos, mesmo atrasado, fiz questão de apresentar alguns pontos de vista acerca dos espetáculos assistidos, e o fiz de modo meio acelerado. A vida tem exigido tal presteza. Entretanto, penso, essa é uma alternativa para que trocas e interlocuções possam ser desenvolvidas.
A todos, coloco-me à disposição. Então, abraços fraternos do tamanho do mais amplo bem querer.
Vamos que vamos, fazendo histórias, estando na história, registrando para a criação de uma história. Ao finalizar:
Vai passar nessa avenida um samba popular (...)
Num tempo, página infeliz da nossa história,
passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações.
Dormia a nossa pátria mãe tão distraída
sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
Seus filhos erravam cegos pelo continente,
levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval,
o carnaval, o carnaval.(...).[3]
[1] Pesquisador e professor do Instituto de Artes da Unesp de São Paulo. Integrante, com justo júbilo, do Núcleo Nacional de Pesquisadores de Teatro de Rua.
[2] Mario PEDROSA. Frade cético, crianças geniais. In: Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p.177-78.
[3] Vai passar, letra de Chico Buarque de Hollanda e música de Chico Buarque de Hollanda e Francis Hime. Coletado no endereço eletrônico http://letras.terra.com.br/chico-buarque/45184/ [visitado em 08/07/2008].
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